JM Coetzee - A Desgraça

*Spoilers*

Nunca fui muito de fazer reviews de livros, e, digo desde já, que não se trata de um review mas sim de uma reflexão acerca deste livro de John Maxwell Coetzee.

Li-o há coisa de um mês e, francamente, o livro deixou-me extremamente impressionado. Não posso dizer que tenha uma história fantástica, não é nenhum thriller. Não posso dizer que tenha gostado particularmente de nenhum dos personagens. Mas há algo de extremamente magnético no livro.

O quê? Não sei bem, mas talvez uma mistura de factores que inclui o facto da história não ser incrível e os personagens serem apenas pessoas normais. O realismo é tão premente ao longo do livro e a evolução é tão constante que faz parecer tudo normal como se fosse a história do nosso vizinho do lado. É um pouco difícil de explicar, mas neste livro a impressão da vida que é normal, rotineira, com os "Guilty pleasures" do personagem principal leva-nos atrás dessa linha até sermos esbofeteados na cara com um acontecimento extraordinário que, ao não ser descrito, é descrito na perfeição. A cena do assalto e da violação nunca são descritas em pormenor. Ficam os detalhes no ar o que torna tudo muito mais horrível e asqueroso, pois é deixado à imaginação do leitor decidir os detalhes sórdidos. Tal como na vida real. Quando ouvimos estórias de alguém a quem aconteceu qualquer coisa, costuma ser assim, uma imagem borratada da qual nunca teremos a percepção exacta. E onde muitos autores descreveriam a cena em detalhe (o que não tem mal nenhum, realce-se), aumentando o conteúdo de choque, Coetzee ao não detalhar nada recorre ao realismo mais cortante. Nós não estivemos lá e, por isso, nunca saberemos a verdade do que se passou, mas nunca deixaremos de imaginar e formular a nossa verdade.

Coetzee trata o leitor como um igual. Não condescende interpretações ou explicações. Segue em frente com o seu personagem sem contemplação, sem explicações alongadas. Nâo sou especialista literário mas na minha humilde opinião este livro é o mais realista que já li. Talvez A Morte de Ivan Illitch se lhe equipare, mas A Desgraça é cortante. O ritmo do livro é incrível, lento o suficiente para nos dar a sensação de tempo a passar com as peripécias de Lurie, que nos envolvem até ao momento em que (tal como na vida real) quando menos se espera, há um acontecimento extraordinário a pôr tudo em perspectiva que acontece a uma velocidade que nos deixa indecisos sobre o que pensar. E o realismo continua, com os motivos escondidos dos personagens. Lucy que não quer falar sobre o assunto e escolhe estranhos caminhos diferentes, Petrus críptico em relação a tudo a deixar mil e uma dúvidas no ar, o aparecimento de Pollux, tudo coisas difíceis de entender, mas lá está, de forma realista, nós nunca saberemos o que vai na mente de outra pessoa, por muito próxima que ela nos seja e Coetzee verga o leitor a ter de se resignar que a vida assim funciona. Por vezes, até Lurie, é difícil de entender apesar de narrar e expressar muito do seu pensamento.

E a realidade é que é tudo assim. Tudo vai e tudo vem, de forma inevitável ao sabor do tempo, sempre a contar e que nunca vai parar. E no meio de tudo, muito fica por compreender e pouco é linear. E temos de lidar com isso da melhor forma, imaginando as nossas verdades e as nossas conclusões ou deixando as coisas no ar, aceitando que nunca poderemos decifrar os verdadeiros motivos. No final, A Desgraça está no que não sabemos e não compreendemos.

O cuco que não quis comer as couves

Ontem, surgiu este artigo no The New York Times que foi prontamente contrariado por este utilizador do LinkedIn.

O artigo do NYTimes fala de vários pontos, sendo que, alguns deles estão potencialmente exagerados. Mas o que me chama mais a atenção é a pressão aparente sobre os funcionários e isto é uma questão recorrente em qualquer local de trabalho, dos que eu frequentei até hoje.

A parte mais impressionante do artigo é quando são contadas as histórias de pessoas que passaram por uma tragédia pessoal, abortos involuntários, cancro (no trabalhador e num familiar) e que foram tratados de forma completamente sub-humana.
Na resposta do LinkedIn, aparentemente de um actual trabalhador, o mesmo fala de todos os pontos do artigo do NYTimes mas passa completamente ao lado desta questão da desvalorização e desumanização do trabalhador, limitando-se a dizer que se aconteceu não devia acontecer.

Da minha experiência profissional e da experiência profissional daqueles que me são próximos o tema é recorrente e é o seguinte: Está tudo bem até deixar de estar tudo bem,

O actual trabalhador da Amazon conta como no primeiro dia de trabalho a Amazon oferece um laptop, um pequeno-almoço entre outras coisas relativamente sem importância. Quer ele dizer que as condições que a Amazon oferece são boas e adoça-nos essa percepção com os brindes dados exclusivamente no primeiro dia de trabalho. Mais à frente no artigo conta como têm "Nerf wars" e jogam uns com os outros etc. Aparentemente, o trabalho perfeito.

Contudo, este tipo de recepção é comum. Trata-se daquela questão que as empresas modernas querem levar muito a sério acerca da motivação dos funcionários, mas é nesta questão, precisamente, que a maior parte delas falha e, devo eu dizer, muito. E porquê? Porque, digo eu, a motivação de uma pessoa não é nem nunca poderá ser um trabalho part-time. Não é algo que se possa discernir quando acaba e onde começa. A motivação deve ser sempre considerada em todas as partes do dia, pois, de outra forma, não faz sentido absolutamente nenhum.

De que é que adianta na Amazon darem tudo isso no primeiro dia e nas primeiras semanas é tudo ouro sobre azul, mas chegar à primeira dificuldade e ouvir um "desenrasca-te"? Isto não aconteceu na Amazon (pelo menos, não que se saiba). É apenas um exemplo prático. De que é que adianta dar o litro e estar motivado se quando eu ou um familiar meu tiver cancro (ou outro problema qualquer de menor valor, que também têm impacto, por vezes) vierem dizer que os meus problemas pessoais estão a prejudicar o trabalho? Acham que o trabalhador pensa "pois, mas aqueles brindes no primeiro dia...". Não, não pensa, para o trabalhador isso já lá vai, porque na maior parte dos trabalhos, os brindes nem sequer são coisas propriamente tangíveis. São normalmente coisas que têm um significado mais simbólico do que propriamente material, e, dessa forma, só fazem sentido num contexto de motivação. Se o trabalho de motivação parar a qualquer ponto essas coisas simbólicas, nada significam.

O que as pessoas, e as empresas, não entendem, é que os brindes e os dias dedicados a algo como acontece noutras empresas, ou noites grátis em hotéis, no caso da hotelaria, não aliviam o fardo do trabalho. Na Amazon, como em qualquer outro trabalho, há pressão. Mas sendo a Amazon uma empresa de serviço ao público há sempre um sector que tem mais pressão e esse sector é aquele que lida directamente com o cliente, sendo que a pressão está completamente no soldado raso que tem de atender as chamadas e lidar com o cliente pessoalmente. E podem perguntar: porquê? Porque é o único funcionário que lida não só com as expectativas do superior como com as expectativas do cliente. É o único que está emparedado, muitas vezes, em situações em que não pode satisfazer o cliente e, consequentemente, não pode satisfazer a chefia porque não pôde satisfazer o cliente tornando o cliente num mau cliente. E onde entra a motivação no meio disto?

Eu trabalho na hotelaria, hoje em dia. A certa altura na empresa onde trabalho foi imposto uma classificação alvo a ser recebida por parte dos funcionários até final de determinado mês. Essa classificação, gerida por um famoso site de reservas ao qual recuso fazer publicidade, sendo que a classificação dos funcionários era, à data, a mais alta, e por isto depreende-se dos funcionários se são prestáveis ou não etc.
E agora eu deixo esta simples questão. Se há várias áreas de classificação, como funcionários, limpeza, localização etc. e os funcionários são os que têm a pontuação mais alta, o que é que isto nos diz? Diz-nos que, obviamente, o problema não está nos funcionários mas sim em outros pontos de condição intrínseca à unidade hoteleira. Um exemplo prático. Eu recebo um check-in. Faço o check-in com a maior das simpatias e o cliente nesse momento vai muito satisfeito. Quando ele encontra lixo no balde do quarto (que supostamente deve estar vazio), quando encontra um quarto cheio de humidade, quando quer usar algo que está avariado, como é que acham que ele reage? Eu diria que 80% dos clientes ficam muito aborrecidos e a partir daí não há nada a fazer. Esse cliente está perdido e vai classificar tudo mal. Porque a má imagem é contagiante. Já tive clientes que se vieram queixar porque não tinham cama de casal e depois escreveram uma reclamação e aí os horrores iam ao ponto de cabelos na banheira.

Isto para explicar que aquilo que em inglês é o tão apregoado "Costumer Satisfaction" não depende nunca só da pessoa que atende o cliente porque é uma questão subjectiva e não objectiva. Como é que é possível tornar maus clientes em bons clientes? Nem sempre o é, e devo eu ser criticado e punido por causa disso? Não, não devo, porque circunstâncias são circunstâncias e nada as pode mudar. Há pessoas que simplesmente querem chatear-se. Se eu for criticado, como já fui e muitos outros já foram em questões que não têm culpa nenhuma, o que é que quer dizer as noites grátis que me oferecem? Nada. Porque a partir daí qualquer trabalhador fica com a sensação que é tudo apenas para inglês ver, porque está tudo bem até deixar de estar. E porque quando esperamos por vezes compreensão relativamente a algum erro esporádico ou algo que simplesmente correu mal, não temos compreensão mas sim repressão à base do medo.

O que move o mundo do trabalho é o medo. É o medo de perder o emprego. É o medo de ser deslocado. É o medo de ser repreendido. Medo.

Aqui é que entra a estória do cuco que não quis comer as couves. Começa assim:
Era uma vez um Cuco
Que não gostava de couves.
Mandou-se chamar o pau
Para vir bater no cuco
O pau não quis bater no cuco
O cuco não quis comer as couves
Ele ia sempre a dizer: “Couves não hei-de eu comer!


E acaba assim:
Mandou-se chamar a morte
Para vir matar o polícia
A morte quis matar o polícia
(Substituir morte por patrão) 
O polícia já quis prender o homem (Substituir polícia por vice presidente)
O homem já quis ralhar com o boi (Substituir homem por director)
O boi já quis beber a água (Substituir boi por director regional)
A água já quis apagar o fogo (Substituir água por director da unidade)
O fogo já quis queimar o pau (Substituir fogo por assistente de direcção)
O pau já quis bater no cuco (Substituir pau por chefe de secção)
O cuco já quis comer as couves

Era uma vez um cuco
Que já gostava de couves!


Explicando. No mundo do trabalho de hoje em dia, é frequente encontrar pessoas que não fazem ideia do que se passa no seu local de trabalho, mas, mesmo assim, ocupam cargos de decisão. E tudo corre mais ou menos bem se se tratar de uma equipa de trabalho experiente e calejada. Excepto quando há situações que escapam ao âmbito dos trabalhadores e carecem de decisão superior. Já tive superiores meus a perguntarem-me o que é que eu faria no lugar deles em relação a decisões exclusivamente da sua responsabilidade. Ao que eu não respondi, porque eu não ganho para fazer o lugar deles. Mas quando estas decisões, que são, normalmente, importantes no âmbito do trabalho (daí que não possa ser o fundo da hierarquia a decidir), ficam em suspenso criam-se problemas. E aí começa o cuco a não comer couves. E as coisas vão passando até que chega a morte personificada na imagem do mega chefe impossível de aturar e completamente intratável. E então vem tudo por aí abaixo. E qual é o problema com isso? O problema é revelar a incompetência nas unidades intermédias da hierarquia em resolver um problema, muitas vezes simples.
Uma analogia é aquela em que os enfermeiros podem dar uma sugestão ao médico para prescrever o medicamento, mas se o médico não o prescrever chega a morte (embora neste caso o cuco nunca mais coma couves). Eu posso sugerir a resolução fácil de algo, mas apesar da resolução potencialmente simples a mesma tem de ser aprovada.

O mesmo se pode dizer quando os funcionários adquirem vícios. Como o posto imediatamente acima sabe menos do que os funcionários só quando chega a morte é que as coisas se endireitam.

Resumindo, o que eu quero dizer é que a gestão de humanos não é uma ciência palpável. Não é algo que venha nos livros e depende sempre de pessoa para pessoa. A mim, entusiasma-me pouco uma promoção na conjuntura actual da empresa onde laboro. Outros não conteriam a excitação. Cada pessoa tem as suas motivações e a falha em perceber como é que as pessoas reagem a diferentes estímulos é a perda de qualquer empresa a nível de recursos humanos. E acaba por ser curioso, que a disciplina de recursos humanos tenha conseguido tantos "avanços" ultimamente, mas que esses avanços acabam por esvaziar de humanidade muitos locais de trabalho. As empresas fazem o que vem no livro e depois dizem "Eu já fiz a, b e c, agora têm de render!", lá está, está tudo bem até deixar de estar.